UBERIZAÇÃO: A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NA ERA DIGITAL

O avanço tecnológico, ocorrido em nível global nas últimas décadas, originou novas relações de trabalho, como aquelas decorrentes de atividades desenvolvidas por meio dos aplicativos móveis.
 
As plataformas digitais de trabalho (trabalho por aplicativo ou “on demand”), a propósito, quintuplicaram em todo o mundo na última década, de acordo com o último relatório intitulado World Employment and Social Outlook 2021 da OIT – Organização Internacional do Trabalho.
 
No Brasil, as mais diversas classes de trabalhadores e trabalhadoras, vivenciando o desemprego em um mercado de trabalho cada vez mais concorrido e desigual, encontraram guarida neste novo nicho do mercado digital. 
 
É certo que com a acentuação dos recursos tecnológicos e o desenvolvimento de novas ferramentas de trabalho, as relações trabalhistas também se modifiquem. E o conceito de Uberização surge neste cenário como um novo modelo de trabalho que, em teoria, apresenta-se como mais flexível, na qual o trabalhador presta serviços conforme a demanda e sem vínculo empregatício, ou seja, surge uma nova classe de trabalhadores desprovidos dos mais básicos direitos trabalhistas conquistados pela classe operária ao longo dos anos e, como consequência, a consolidação da precarização da mão de obra.
 
A Uber como parâmetro de empresa a utilizar esta nova forma de exploração do capital deu origem ao prefixo Uberização, que inclui, por certo, todos os demais aplicativos que oferecem os diversos tipos de serviços por meio das plataformas digitais (transporte de pessoas e de produtos), a saber, 99, IFood, Rappi entre outros.
 
Sob o pretexto da utópica autonomia de seus colaboradores, a Uber tenta se eximir de qualquer vínculo com esses, se apresentando como mera intermediária das relações entre passageiros e motoristas. Em outras palavras, afirma que não é uma empresa de transporte, mas sim uma empresa de tecnologia que opera uma plataforma de mobilidade urbana. 
 
Em nosso Judiciário Trabalhista existem duas correntes jurisprudenciais ao classificar a relação trabalhista decorrente da Uberização, ou seja, a que reconhece os requisitos do vínculo empregatício e a que afasta a hipótese de existência de uma relação de emprego.
 
Observando-se os fundamentos apresentados em algumas decisões judiciais de primeiro e segundo graus, é possível concluir que a grande discussão cinge se em torno da caracterização da subordinação, um dos requisitos mais importantes para a configuração da relação empregatícia. Apesar da divergência de entendimentos acerca da matéria, a tendência progressista é no sentido de compreender que aquele clássico conceito de subordinação, operada por meio da direção direta do empregador, está definitivamente superado.
 
Dito de outro modo, é possível reconhecer diversas características da subordinação dentro da relação da Uberização uma vez evidenciada a ingerência exercida pelas empresas em relação aos seus trabalhadores e trabalhadoras, diga-se, através de ordens diretas promovidas por meios remotos ou digitais. Indubitavelmente, são as plataformas digitais quem estabelecem, unilateralmente, os padrões da prestação dos serviços, bem como a dinâmica de funcionamento da atividade econômica.
 
Desse quadro, temos a denominada figura da subordinação estrutural, da qual me filio, caracterizada pelo fato de o empregado estar estruturalmente vinculado à dinâmica operacional da plataforma, incorporando a cultura cotidiana empresarial ao longo da prestação de serviços.
 
Inconteste, portanto, a necessidade da releitura dos artigos 2º e 3º da CLT diante da nova realidade do mundo do labor humano, além de compreender o teor do art. 6º, parágrafo 1º da CLT que, inegavelmente, ganha relevo na atual conjuntura por possibilitar a caracterização da subordinação jurídica fora do estabelecimento do empregador, diga-se, através dos meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão.
 
Ademais, perfeitamente compreensível e aceitável o entendimento daqueles que reconhecem a relação de emprego entre motoristas de aplicativos e plataformas digitais valendo-se do conceito clássico da subordinação (subordinação objetiva), uma vez que o trabalhador, de fato, não controla os meios da própria produção, pois não determina o preço da corrida e nem mesmo o percentual de repasse. Importante salientar, ainda, que a flexibilidade de horários de trabalho também não impede a caracterização da habitualidade da prestação de serviços, outro requisito legal para o reconhecimento da relação empregatícia.
 
Porém, o entendimento em relação ao reconhecimento do vínculo empregatício entre os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos e as plataformas digitais não é pacífico no TST - Tribunal Superior do Trabalho. A divergência de entendimentos entre as Turmas da Corte Superior Trabalhista, a propósito, será definida pela SDI-I (Seção de Dissídios Individuais), que uniformizará a matéria.
 
Em uma primeira conclusão, o Direito do Trabalho, por certo, necessita urgentemente responder a esta nova realidade e, assim, afastar a insegurança jurídica que atinge os inúmeros trabalhadores e trabalhadoras no mercado de trabalho. Ora, como garantir as condições de trabalho mínimas diante de jornadas extenuantes, remunerações injustas e ausência de uma rede de proteção em caso de acidentes ou doenças? 
 
No plano do direito comparado, tem-se verificado a tendência do Poder Judiciário, tanto da Europa, como dos EUA, reconhecer a natureza trabalhista da relação entre prestadores e as empresas que exploram as plataformas digitais.
 
O Brasil, por outro lado, parece caminhar na contramão do combate à economia dos “bicos”, uma vez que nenhuma proposta aventa a configuração da relação de emprego. O Projeto de Lei 2842/2021, por exemplo, até prevê o recolhimento de contribuição para o INSS, mas a ser efetuado pelo próprio trabalhador, como contribuinte individual, lamentavelmente. Decerto, somente a regulamentação dessa categoria, como percebe-se, não é suficiente a afastar a informalidade dessa categoria de trabalhadores, e tampouco garantir os direitos trabalhistas mínimos, previstos na Constituição de 1988 (art. 7º). A informalidade no mercado digital apenas interessa ao capital/lucro e, seguramente, estimula a precarização do trabalho e, como consequência, intensifica a desigualdade social. 
 
Em que pese posicionamentos em sentido contrário, diante da ausência de uma legislação específica e analisando-se cada caso concreto, perfeitamente viável o reconhecimento do vínculo de emprego do trabalhador que ativa-se por meio dos aplicativos de plataformas digitais, sendo certo que qualquer renúncia ou eliminação dos mínimos direitos trabalhistas, representaria um incômodo retrocesso histórico.
 
Paulo Leandro O. de Freitas, OAB/SP 190.482. Advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/SP. Diretor Jurídico do escritório CJA Advogados Associados.

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